Escrita criativa, Estórias

Celeste Seabra e o homem do coelho-caramelo

Celeste Seabra celebrava o seu vigésimo quinto aniversário dali a dois dias. Os últimos cinco dos oito quilos ganhos durante o último ano de mestrado não haviam recebido convite, mas ainda assim juntar-se-iam à festa, cuidadosamente enlatados dentro de uma cinta elástica, mas pouco, comprada no dia anterior.

Apesar de tudo, Celeste vestia bem as novas curvas, que abraçavam de uma forma historicamente feminina as suas coxas e traseiro, mas que tinham feito o favor de deixar – em grande parte – a sua cintura em paz. Continuar a ler

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Escrita criativa, Histórias com H

O Inferno tem que ser melhor que isto

No meio da pior tempestade de neve que alguma vez vira, o Tenente Aldrin entrou porta adentro como tantas vezes antes, mas como nunca o vira. Vinha carregado a braços por Hugh Swanson e Thomas Young, dois dos seus colegas de regimento, cujo número estaria agora cortado em metade, embora não pudesse ter a certeza até que a tempestade passasse.

– Carter, os franceses deram-lhes armas! O tenente…
– Deixa-me ver o ferimento. – pedira Jonathan Carter, o médico de serviço nesse dia e nos restantes desde que haviam perdido o verdadeiro médico na batalha do Rio Negro.

Swanson e Young deitaram o tenente Aldrin numa mesa de operações improvisada a partir de tábuas de madeira escura e bafienta de carvalho. Continuar a ler

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Escrita criativa

Recomeço

Sofia tinha crescido com alguma dificuldade e não sem um respeitável número de colheradas forçadas pela mãe que lhe entravam metade pela boca, a outra pelo nariz.
Sempre tinha desdenhado de cheiros fortes e cores demasiado vivas. Tudo o que não fosse castanho era o suficiente para a deixar desconfiada quanto ao resultado da experiência de colocar um pedaço de comida na boca.

Um dia, a meio dos seus 31 anos e cerca de 12 dias após o regresso de uma viagem verdadeiramente inspiradora pela Índia, Sofia tomara uma decisão: mudar. Nada em particular, mas ao mesmo tempo tudo. Continuar a ler

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Histórias com H

La Havaneza

Havana vivia naquele ano um dos verões mais quentes de que havia memória. As suas ruas coloridas repletas das mais estranhas e memoráveis personagens – como a velha Dolores, a ex-prostituta que se sentava junto à praça de táxis a fumar charutos aparentemente o dia todo – pareciam, à luz daquele sol abrasador, pertencer àquela cidade mágica hoje mais que nunca.

Dobrando uma esquina que ia desaguar na praça principal – a dos táxis que faziam companhia a Dolores -, Manolo suspirou de alívio ao dar o dia de trabalho por terminado. Era verão, ainda estava sol e fazia muito calor. Não tinha nenhuma mulher, muito menos pirralhos à sua espera em casa e estava sedento, tanto de bebida como de alguma interação humana.
Virou a esquina e entrou na velhinha La Havaneza. Continuar a ler

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Histórias com H

“Welcome to Sky Valley”

Tyler tinha acordado tarde, como já era hábito. Acordou, mais uma vez, sem qualquer memória da noite anterior ou de qualquer razão para sair da cama.
A casa estava silenciosa, não exibindo qualquer evidência sonora de outras existências para além da sua. Por breves instantes, sentiu um misto de gratidão e de alívio pelo facto da mãe trabalhar. Sabia que já nem devia lá viver, com a idade que tinha, mas naquele buraco de terra esquecida a que chamavam cidade, não pareciam existir grandes alternativas.

Deixou-se ainda ficar na cama por mais algum tempo até que a fome o venceu. Todos os dias a luta era a mesma e todos os dias ela vencia. Apesar disso, estava cada vez mais magro. Continuar a ler

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Histórias com H

Bela é a Noite

Desprendeu-se com cuidado do abraço adormecido de Rüdiger e levantou-se.
Não aguentava a visão da faixa vermelha do seu uniforme, nem saber que dali a horas acordaria e a veria à luz da manhã, com todos os pormenores daquele símbolo imundo. Decidiu atirar o vestido preto que usara na noite anterior para cima do uniforme, pelo menos de forma a tapar aquela monstruosidade.

O que sentia era algo indescritível aliado a um sentimento de culpa e vergonha. Por um lado, tinha feito o que lhe havia sido pedido, mas por outro… fora demasiado longe.

A missão que lhe tinha sido atribuída pela Frau Engelberg fora a de seduzir Rüdiger Eckhardt, um soldado recentemente condecorado pela sua ‘bravura em combate’, se se podia chamar bravura àquilo. Mas para os homens do Reich, Herr Eckhardt era um herói. Um herói que – encurralado pelas tropas inimigas – conseguira derrotar sozinho dezenas (“centenas”, diziam uns) de homens armados. Um herói que era a personificação de tudo o que odiava; que tinha no brilho dos olhos o reflexo das vidas que ceifara. Um herói que defendia a causa que chacinara os seus amigos sem qualquer réstia de humanidade. Continuar a ler

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Short stories

Yukio no noroi (幸雄の呪い – A Maldição de Yukio)

Quando alguém morre uma morte violenta, tão lenta que dá tempo de pensar, a dor rapidamente se transforma num ódio tão profundo que perdurará até à eternidade no local onde ocorreu o crime.

Toda a gente sabia disto em Shirakawa.

Apesar dos seus tenros nove anos, Misa ia todos os dias para a escola a pé, sozinha. Tinham-se já passado alguns meses desde que descobrira um atalho para a escola através de um túnel numa velha estrada da cidade. Desde então, novas estradas tinham sido criadas, mais modernas e com um pavimento mais liso, pelo que o túnel e a estrada em que o haviam construído tinham gradualmente deixados de ser utilizados pelos habitantes locais.

Agora, só jovens do liceu mais próximo iam para lá fumar e tomar outras coisas que Misa era ainda demasiado inocente para identificar. Continuar a ler

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Short stories

O lobo que queria guardar ovelhas

I

O lobo Fenrir acordou cansado. Cansado da luz intensa e do calor dos archotes que os aldeões hasteavam em sua perseguição; cansado de fugir; cansado de lutar.
As marcas no seu corpo forte eram mais que muitas, mas havia sempre espaço para mais. Não se lembrava de onde tinha nascido o ódio entre si e a espécie humana; a única certeza que tinha era de que os anos já eram demasiados para quantificar o terror que trazia a Trondhjem.
Com o passar do tempo, tinham-se tornado uma espécie de lenda, de história aterrorizante que os avôs contam às crianças em volta da segurança das suas lareiras. Continuar a ler

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Dúvidas existenciais

Queria dizer-te olá, mas tive vergonha

Chega a ser engraçado o quanto um simples “olá” consegue ser assustador. Ou melhor, pensar em dizer olá a alguém a quem não sabemos se o irá corresponder.

Falo por mim, claro, mas só a indecisão de dizer ou não olá a alguém que perdemos há muito para a vida consegue, por si só, dar-me a volta ao estômago.

A maioria das vezes – se não todas – acabo por escolher passar por ti, anónima, ou assim penso que o sou. Apesar de te reconhecer após todos estes anos, algo dentro de mim diz-me que tu não serias capaz do mesmo, de me reconhecer a mim.
E como também não me falas, deve ser verdade. Continuar a ler

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Dúvidas existenciais

Cidade-Mãe

Por mais viagens que faça ou venha a fazer, sei que nunca outro lugar vai despertar em mim exactamente os mesmos sentimentos que a minha cidade (ainda) desperta.
Mantenho com a minha cidade-natal uma espécie de relação extra-conjugal. Foi o meu primeiro amor e esse nunca se esquece. Pode não ser o que escolhemos – por uma razão ou outra – para casar, mas teremos sempre um enorme espaço para ele no nosso coração.

O encantamento por ele nasceu comigo e nunca me abandonará. Chega a ser reconfortante saber que, por mais coisas que me aconteçam por essa vida fora e por mais mudanças a que tenha que me submeter ou que se instalem sem pedir licença, pelo menos esta parte de mim nunca mudará. Continuar a ler

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